Uma pessoa adulta toma cerca de setenta decisões por dia, ou 3.500, dependendo da fonte. Mas é indubitável que, dependendo da profissão que exerça, essa carga decisória pode crescer muito. Até esgotá-la por completo. Um cansaço que não é físico, e sim mental, e que muitas vezes nem notamos. É a chamada fadiga decisória, um conceito que fez muito sucesso nos últimos anos.

Segundo essa ideia, teríamos uma capacidade limitada de tomar decisões, a qual iria se esgotando, como quando é preciso escolher um filme na hora do jantar. E essa deterioração, quando chega o esgotamento, nos leva a optar sem a devida reflexão, no piloto-automático.

Por isso, personalidades como Barack Obama, Mark Zuckerberg e Steve Jobs se vestem (ou vestiam, no caso de Jobs) praticamente do mesmo jeito todo dia, para economizar uma decisão e assim melhorar seu rendimento ao longo da jornada. Tudo isto agora está sendo questionado.

Porém, um novo estudo soma-se agora a outros indícios científicos da existência desse fenômeno. Esse trabalho foi feito entre médicos de atendimento primário na Pensilvânia e em Nova Jersey que receberam aproximadamente 50.000 pacientes com possível indicação de mamografia ou colonoscopia.

À medida que a manhã avançava, as chances de o médico encaminhar seus pacientes a esse exame iam diminuindo, até a hora do almoço. Logo depois dessa pausa, os dados voltavam a se recuperar por um momento, mas depois caíam de novo fortemente até o final da tarde, quando o encaminhamento a esses exames se tornavam muito menos provável que no começo da manhã: de 64% para 47%. Os investigadores descartam que seja por falta de tempo.

O estudo, publicado na revista JAMA, conclui que a fadiga decisória foi prejudicando a capacidade desses médicos, que após cada paciente se aproximam mais da opção mais fácil: não fazer nada. “À medida que o dia avança, os clínicos apresentam menos probabilidades de cogitarem uma avaliação de câncer para seus pacientes, simplesmente porque já fizeram isso (e tomaram outras decisões) várias vezes”, afirma o estudo.

Este caso é muito parecido com o experimento natural registrado há uma década por pesquisadores da Universidade Ben Gurion com juízes em Israel.

Quando tinham que analisar a concessão da liberdade condicional aos detentos, as possibilidades de resposta positiva iam diminuindo drasticamente ao longo da jornada: de 65% para praticamente 0% pouco antes do almoço. Quando os juízes se cansavam de decidir, a opção fácil era não conceder a liberdade.

Não se trata de simples cansaço físico, ou os dados desses juízes não seriam exatamente iguais no turno da manhã e da tarde. Esse esgotamento mental também foi registrado em diferentes estudos no âmbito sanitário: os profissionais da enfermaria tomam decisões piores, há mais prescrições desnecessárias de antibióticos e opiáceos, as mãos são menos lavadas, e as vacinações contra a gripe se reduzem. Também influencia os erros de diagnóstico radiológico e nas biópsias solicitadas por dermatologistas.

Em territórios mais mundanos, esse comportamento foi observado na escolha de acessórios na venda de automóveis (as últimas escolhas serão as mais caras); em jogadores de futebol mentalmente esgotados que tomarão decisões piores; e nos clientes da IKEA, incapazes de fazer planos depois de fazerem compras nos labirintos dessa rede de lojas, decidindo entre esta fronha ou aquele copo.

A partir dessas observações na vida real, os psicólogos começaram a estudar o fenômeno em laboratório, geralmente com alunos como cobaias, que eram submetidos a testes mentais mais ou menos exigentes para ver como evoluíam depois.

Do sucesso à controvérsia

A fadiga de decisão é parte de um quadro psicológico estabelecido por Roy Baumeister: o esgotamento do ego. Basicamente, essa ideia sugere que a força de vontade e a capacidade de autocontrole são finitas, se esgotam.

Se passamos a tarde inteira rejeitando uma tentação (uma caixa de bombons no trabalho), é provável que, quando chegarmos em casa, pequemos de algum modo.

Ou que depois de resistir a inúmeros caprichos nos corredores do supermercado peguemos a barra de chocolate que com toda intenção está exposta ao lado da caixa. Há alguns anos, essa perda de energia decisória foi relacionada à glicose: isso causava um aumento do autocontrole. Numerosos experimentos em laboratório mostraram seus efeitos: os estudos se encaixavam e a teoria ganhava peso.

“Os melhores tomadores de decisão são aqueles que sabem quando devem parar de confiar em si mesmos”, afirmou Baumeister. O próprio conceito de fadiga de decisão chegou à fama em 2011 em um popular artigo de John Tierney no The New York Times, que resumia as ideias de seu best-seller sobre a força de vontade, escrito precisamente com Baumeister.

Mas as experiências que a psicóloga Carol Dweck, especialista em motivação, começou a realizar no início desta década, evidenciaram muitas restrições nesse conceito.

Dweck e sua equipe descobriram que o autocontrole não era um elemento limitado que se esgota e se recupera com glicose. Se alguém pensa que a força de vontade é algo biologicamente limitado, é mais provável que se sinta cansado quando realiza uma tarefa difícil.

E se não o veem assim, a deterioração não acontece dessa forma, nem precisam recorrer à glicose, segundo o trabalho de Dweck. “Quando você tem um conceito limitado da força de vontade, está constantemente alerta, vigiando-se constantemente.

‘Estou cansado?’, ‘Estou com fome?,’ ‘Preciso de um descanso?’, ‘Como me sinto?’”, explica a pesquisadora de Stanford. “E ao primeiro sinal, você pensa: ‘Preciso de um descanso’”, acrescenta.

E então veio o terremoto, um abalo que destruiu boa parte da psicologia: a crise de replicabilidade. É um problema geral da disciplina, de estudos e experiências pouco robustos, um tanto enviesados e forçados, cujos resultados ninguém é capaz de repetir, que atingiu em cheio o esgotamento do ego. Agora está completamente sob suspeita, depois que várias revisões realizadas entre 2014 e 2016 derrubaram a validade desse fenômeno.

A força de vontade não seria finita e não se desgasta nem se recupera como propuseram Baumeister e muitos outros psicólogos em experiências que agora perderam seu valor.

Um dos pesquisadores que estudaram o fenômeno com mais afinco é Michael Inzlicht, da Universidade de Toronto. “O esgotamento pode ser real, mas não podemos confiar nos estudos de laboratório que apoiaram a ideia”, explica Inzlicht.

Nesta frase ele resume o paradoxo de seu estudo mais recente sobre o fenômeno, que acaba de ser publicado: “Existem exemplos reais de fadiga de decisão, o fenômeno poderia ser legítimo, mas não podemos confiar na literatura científica sobre o assunto.

É um estado de coisas estranho e triste”, lamenta. Todos os casos explicados acima envolvendo médicos, juízes e consumidores que fraquejam podem ser reais, mas não sabemos por que isso acontece.

Portanto, é no mínimo ingênuo pensar que podemos lidar ao nosso bel prazer com esse controvertido fenômeno da fadiga de decisão. “A ideia está sob suspeita, inclusive é possível que seja inexistente”, insiste o psicólogo. Como ele e seus colegas explicam no estudo, o autocontrole se desvanece não porque as pessoas percam energia, mas talvez porque experimentem uma mudança em sua motivação: não querem mais continuar fazendo o que devem, mas o que desejam, e ativam o piloto automático. Então, o truque de produtividade de Obama e Zuckerberg é inútil? “Possivelmente”, afirma Inzlicht. “Se você não gosta de escolher roupas, então você pode considerar isso um fardo. Mas se você gosta de fazê-lo, isso não deveria afetá-lo, poderia até ajudá-lo se aumenta seu estado de ânimo” conclui.

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